MARIENE DE CASTRO DEDICA GRAVAÇÃO DE UM SER DE LUZ À CLARA
NUNES EM SEU NOVO CD "TABAROINHA"
Em “Tabaroinha”, segundo trabalho pela gravadora Universal,
Mariene de Castro reafirma a força indelével de seu canto.
Mariene de Castro reafirma a força indelével de seu canto.
Foi lançando mão do diminutivo feminino da
expressão-adjetivo tabaréu que a cantora baiana Marilene de Castro construiu o
conceito com que alinhavaria o seu novo trabalho, “Tabaroinha”. Não é preciso
enveredar, no entanto, pelos caminhos da semântica a fim de desnudar o
significado do vocábulo comumente usado nos interiores do Brasil para designar
aquela menininha acanhada, matuta, caipira. Tabaroinha é o nome que batiza o
terceiro álbum da artista, que começou a cantar aos 13 anos de idade e, desde
muito pequenina, sambava na frente do espelho vestida de baiana, cheia de
pulseiras.
Mariene de Castro é mesmo uma tabaroinha por natureza, mas seu canto, sua arte,
embora preserve de forma muito íntima e indelével as referências culturais
interioranas que acabariam por se converter em matrizes para a constituição de
um trabalho singular, traduzem a maturidade de uma cantora absolutamente pronta
para brilhar nos grandes centros urbanos do Brasil e do restante do mundo. Não
à toa encantou a França, onde a crítica especializada a comparou com Edith Piaf
pela arrebatadora força cênica que, por si só, ilumina qualquer palco. Não à
toa abocanhou os Prêmios Braskem (2004) e TIM de Música (2005). Não à toa vem
sendo apontada como a maior e mais importante revelação do samba no Brasil nas
últimas duas décadas.
“Tabaroinha” chega para assinalar a importância de Mariene de Castro no atual
cenário da música brasileira, revelando a sensibilidade e a coerência da
cantora na escolha de um repertório que apresenta o Brasil tal qual o é: ora
árido, ora fértil, ora doce e saudável, ora amargo e dolente, mas
incondicionalmente feliz; um país que todos conhecemos, mas nem sempre
reconhecemos; a terra do samba que dá e de Nosso senhor da Aquarela de Ary; da
fé cega e também raciocinada que se encontram e se dissipam nos altares
católicos e nos terreiros de candomblé; uma nação repleta de matizes
geográficas, étnicas e socioculturais, apaixonante e surpreendente como
Mariene. “Tabaroinha” cumpre justamente, de forma despretensiosa e delicada, a
tarefa de nos conduzir a uma viagem prazerosa, poética, harmônica, pelas
belezas sonoras do Brasil.
E é essa talentosa e verdadeira baiana, a grande guia desta trilha, que nos
aponta o caminho com A pureza da flor, sucesso de Arlindo Cruz que, lindamente
reeditado, ganha ares de um quente samba-de-roda, amparado por um coro de vozes
femininas. Não há hiato para dúvidas: Mariene de Castro possui uma marca
autoral na seleção e interpretação do repertório que seduz não somente pela
incrível capacidade de preservar a memória de ícones e ritmos quase esquecidos
do nosso cancioneiro como também pela explosão cênico-interpretativa com que os
revela a uma nova geração com sede de cultura. Assim, Filha do mar, canção
inédita da cantora e compositora pernambucana Flavia Wenceslau, que dá
sequência ao trabalho, traduz-se em um dos mais belos registros do álbum, em
que a imponência da batida do maracatu se alia à afabilidade da sanfona numa
cordialidade que atrai pelo contraste e impressiona pela precisão.
A perspicácia em apresentar a pluralidade dos ritmos brasileiros, que fazem do
país uma terra singular na cena internacional, é o grande trunfo desta
tabaroinha baiana que privilegia os compositores que sempre fizeram parte de
sua memória afetiva e cujas canções inspiraram-na ao ofício do canto. Os
conterrâneos Dorival Caymmi (1914 – 2008), Nelson Rufino e Roque Ferreira,
recorrentes na discografia da intérprete, novamente são reverenciados. Do
primeiro, Mariene pinça uma relíquia imortalizada no universo infantil do Sítio
do picapau amarelo: História pro sinhozinho, registrada por Maria Bethânia em
Pirata (2006) e que na década de 1970, para a adaptação televisiva da obra de
Monteiro Lobato, foi convertida em tema da personagem Tia Anatáscia. É a versão
infantil, que altera no refrão o nome de ‘Sinhá Zefa’ para ‘Tia Anastácia’, no
entanto, a selecionada pela cantora para homenagear Caymmi.
De Rufino, o samba Amuleto da sorte, que lhe foi dado de presente, já nasceu
clássico e se qualifica para figurar no ranking das grandes criações do autor
de hits imortalizados por um cast de intérpretes famosos que inclui nomes como
Martinho da Vila, Nara Leão, Elza Soares, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e
Alcione. Roque Ferreira, por sua vez, é saudado em três faixas, o que revela a
paixão da artista pela obra do aclamado compositor. Foguete, xote inédito com
versos pontuados pela costumeira delicadeza de Roque, traduz com singeleza o
romantismo, as paixões rasgadas do interior, e chega até a prestar devidas
deferências ao poeta recifense João Cabral de Melo Neto, um momento de pura
beleza neste álbum com a cara e a alma do Brasil. Roque se apresenta também em
Orixá de frente, gravada por Roberta Sá em Quando o canto é reza (2010),
trabalho que a cantora a ele dedicou, e no ijexá Ponto de Nanã, saudação à
deusa dos mistérios, divindade de origem simultânea à criação do mundo, senhora
de muitos búzios, que sintetiza a morte, a fecundidade e a riqueza.
A canção, inclusive, já tem videoclipe pronto, gravado na Reserva de Sapiranga,
no Litoral Norte da Bahia, pelo cineasta norte-americano Kaya Verruno. Foi
nessa mesma reserva, diga-se de passagem, em meio às forças da natureza, que
“Tabaroinha” foi parido, quando por sugestão do produtor Alê Siqueira, um
estúdio foi montado em plena mata para abrigar por duas semanas a cantora e os
músicos que a acompanham neste segundo trabalho pela Universal. O primeiro,
“Santo de casa ao vivo”, foi lançado ano passado pela gravadora juntamente com
o DVD do espetáculo homônimo com que a cantora arrebatava o público no Espaço
Cultural da Barroquinha, localizado na região central de Salvador.
Entre os muitos resgates a que se propõe realizar em “Tabaroinha” para atestar
sua qualidade como intérprete, Mariene não esquece daqueles que ajudaram a
construir a história da música brasileira. Bate-cabeça, portanto, com vontade
para o nosso Oxalá do Baião, Luiz Gonzaga, celebrando o centenário de
nascimento do mestre pernambucano com o registro de Estrada de Canindé.
Sublime! Ela contempla ainda Martinho da Vila, repaginando o sucesso Roda
ciranda, alçada ao top ten das rádios por Alcione em 1984 em decorrência da
gravação (em dupla com Maria Bethânia) no disco Da cor do Brasil.
Neste passeio pelo relicário sonoro brasileiro, a cantora traz para a
boca-de-cena a primeira canção gravada no país, em 1902: Isto é bom, lundu do
compositor, cantor e ator soteropolitano Xisto Bahia (1841 – 1894), que
reverbera em “Tabaroinha” como samba-amaxixado em nova leitura primorosa.
Apaixonada que é pelo samba, Mariene reconhece a importância das grandes
intérpretes femininas que impulsionaram o gênero no mercado fonográfico, como a
saudosa Clara Nunes, a quem dedica a gravação de Um ser de luz, canção do trio
Paulo César Pinheiro/João Nogueira/Mauro Duarte, feita para homenagear a
cantora mineira, morta repentinamente em 1983 após um choque anafilático
durante uma cirurgia de varizes.
Com sua poderosa voz, Mariene de Castro nos intima a acreditar em novos
caminhos para a música no Brasil e nos leva à elaboração de um autorretrato
verdadeiro diante das belezas e dos contrastes de um país que tem cheiro e
sabor de terra molhada, em que todos somos eternos tabaréus. Ainda bem!
http://www.agitototal.com/2012/04/mariene-de-castro-lanca-seu-novo-cd-de.html