Sabiá...Até um dia!

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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Livro desfila o Brasil do sertão e a vida do sertanejo


Segundo romance de Paulo César Pinheiro narra a dura vida dos trabalhadores do campo na época dos coronéis. O protagonista foge de um crime que cometeu e em sua fuga mostra as agruras do homem do campo.

Por Marcos Aurélio Ruy*

O livro “Matinta, o Bruxo” (1) tem como gancho principal duas parcerias do autor em músicas baseadas em obras do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), uma “Matita-perê”, em parceria com Tom Jobim e outra, com João de Aquino, batizada com o nome da obra homônima do escritor “Sagarana”. É o carioca urbano inspirando-se no sertão do país com todas as suas vicissitudes.

Em seu primeiro romance “Pontal do Pilar” (2008), Pinheiro já mostra a influência da obra do grande escritor mineiro, agora ressaltada. Paulo César Pinheiro narra a vida de João, um trabalhador do campo que flagra sua mulher na cama com o filho do patrão. Capa o sujeito e mata a companheira Doralinda, como se lavasse sua honra em sangue, fato muito comum ainda hoje em que a violência contra as mulheres campeia Brasil afora, muitas vezes sem punição.

Na fuga de João - o protagonista - para escapar dos capangas do coronel, com sede vingança, surge o Brasil do sertão com sua pobreza e submissão aos donos da terra e dos meios de produção, onde os direitos são decididos na bala. Haja vista tantos assassinatos de representantes dos trabalhadores do campo no país, que permanecem impunes. Nisso reside a atualidade e a grande qualidade da obra de Paulo César Pinheiro.

Logo no início ele escreve: “ Compadre Amâncio me dizia: - O mundo é no bem e no mal dividido. Ninguém pode ser demais em nada. Nem na felicidade. Sempre fora sábio o compadre, mas me soava equivocada aquela sentença. – É erroso quem tem o que quer que seja em demasia.”

O livro nos arremata ao Brasil que necessita de muitas mudanças, de um povo que “merece mais respeito”, com dizem Milton Nascimento e Fernando Brant. Mas apresenta a vida dos brasileiros do interior com suas crendices e suas maneiras de encarar o mundo do jeitinho do brasileiro forjado por anos de maus-tratos sofridos. Em outro trecho o autor escreve que o personagem “jiboiou sob a copa de um jequitibá real, nos fundos da igrejinha do outeiro, e sonhou. Sonhou com Doralinda, com os Gerais do olho de Doralinda, e com seu sorriso ardiloso de putana e conclui: “jeito de menina ingênua em corpo de meretriz. Alma gêmea de qualquer um”.

Vale a leitura deste romance do letrista de canções como “Lapinha” (com Baden Powell), “Lá Se Vão Meus Anéis” (com Eduardo Gudin) e “Menino Deus” (com Mauro Duarte), garantias da qualidade do autor. Paulo César Francisco Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro, tem 62 anos e foi casado com a grande cantora Clara Nunes, morta prematuramente em 1983, aos 40 anos.

*Colaborador do Vermelho
(1) Paulo César Pinheiro. Matinta, o Bruxo. São Paulo, Editora Leya, 2011

Trecho do livro
“No aveludar do dia foi contabilizar o estrago. Com a frieza que adquiriu em campanha, despiu a jagunçaria, separando o que lhe era de préstimo. Avultou ucharia e arsenal par romaria forçada. Acondicionou tudo em dois balaios, agafanhados no lombo de cavalgadura. As armas dissimulou como pôde. Empilhou os corpos e ateou fogo. A fumaceira disseminou o fedor de carne torrada por todo o vale. A cremação funcionaria par outros como alerta de fúria. Talvez desistissem da missão de preagem os que se deparassem com os carbonizados. E seguiu em frente pra subseqüente estação.
Foi bater, com mais dia e meio de entremontes, em /cachoeira Santa, arraial espetado em desfiladeiro de cataratinhas. Manancial de regos escavando sangas, deslizando por escarpas, formando cortina d’água, branca como mantilha de nubente. Ao pé da cascata rendada, reentrância pedrenta na rocha, com imagem de milagrosa. Relicário sagrado dos cachoeirenses. Foi saber do enigma depois.
Arruado mimoso distribuído dos dois lados da corrente líquida. Florescências multicoloridas, imitando os ribeiros, se entornavam pelos telhados e paredes, em catadupa de arranjos desenhados pelas mãos do acaso, ao léu da primavera ali jubilosamente perenizada. Pareciam moradias de fadas e gnomos. Aldeola de varinha de condão. Encantamento regressou-lhe à alma. Enfeitiçado, sentou à margem do marulho e resolveu se maravilhar. Concentrado, não viu sinhazinha morena se chegando com cântaro de barro no braço, apoiado na curva da cintura. Surgia como materializada ninfa da fonte mágica. Redobrou o maravilhamento.

- Boa tarde – disse a entidade.

- Tarde - balbuciou o embruxado.

- Vi o moço tão entretido. Pensando na vida?

- Senhora, não. É a beleza do rio carregando flor. Tô admirado.

- Faz bem. É graça de Deus. Quem vem de fora aprecia. É abençoado. Nasci à beira dele. Deixa eu me apresentar. Sou Rosália.

- Me chamo Pedro. Prazer.

Doeu mentir pra aquela uiarazinha, mas Matias deixara de existir depois de Zeferino aprender-lhe a alcunha, e João transitava incógnito. Evitava, sendo Pedro, risco pra ele e possível apuro pra tão meiga pétala”.